Como se leva uma estrela para o céu?

"O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente." (Fernando Pessoa) Tal como o poeta, também eu finjo, imagino, invento e crio com as minhas palavras...

terça-feira, janeiro 24

Hoje pela primeira vez...(2)

Por ela:
Hoje, vi-te pela primeira vez. Tinhas acabado de entrar no autocarro com um grupo de amigos, mas, apesar de estares rodeado de gente, parecias distinguir-te da multidão, como se uma aura de luz te envolvesse e atraísse toda a minha atenção para a tua pessoa, enquanto caminhavas pela coxia com passos leves, cabeça erguida e um sorriso no rosto como se a vida te sorrisse de volta. Por um breve instante, os teus belos e brilhantes olhos cruzaram-se com os meus e a satisfação e alegria que vi neles pareceu-me impossível de suportar, como se não conseguisse encarar de frente aquilo que de momento faltava na minha própria vida. Decidi por isso fazer o que melhor faço sempre que temo algo: esconder-me por trás das lentes escuras dos meus óculos de sol, procurando desse modo isolar-me do mundo e proteger-me de ti e da felicidade que carregavas contigo e que eu tanto invejava e tanto temia. Não deixei, no entanto, de te observar por trás da protecção que me ofereciam os óculos, continuando a reparar na maneira despreocupada com que te movias ou na facilidade com que comunicavas com os teus amigos. As vossas gargalhadas eram ao mesmo tempo uma maldição e uma bênção para mim, pois se por um lado faziam com que eu sofresse ainda mais por não ter o mesmo na minha vida, por outro davam-me a esperança de que talvez um dia eu pudesse vir a ter essa alegria que parecia irradiar de ti, atenuando assim a minha dor. E assim fui, durante quase toda a viagem, espreitando pelo canto do olho os pequenos detalhes da tua pessoa; na maneira como passavas a mão pelas madeixas claras desse teu cabelo revolto, ou no brilho que os teus olhos adquiriam cada vez te viravas na minha direcção e me perscrutavas intensamente… Que procurarias tu? Que teria eu que te pudesse dar sem que tu já o tivesses? Noutras circunstâncias, ter-me-ia sentido orgulhosa e contente por despertar a atenção de um rapaz tão giro e interessante como tu; hoje, sentia-me apenas uma criatura de quem tu talvez tivesses piedade… Mas eu não preciso de piedade, nem sequer de caridade! Precisava apenas talvez desse teu sorriso que parecia pintar sonhos de tons brilhantes nos céus cinzentos do meu mundo, afastando por fim as nuvens carregadas que durante tanto tempo teimaram em não se mexer… Mas que digo eu? Que interesse poderias tu ter em “pintar sonhos” na vida de alguém como eu?
Stop. A minha paragem aproximava-se mas, para minha surpresa, quem carregou no botão para que o autocarro parasse foste tu. Olhei em volta para me certificar de que estava no sítio certo e finalmente os meus olhos encontraram os teus, que pareciam aguardar ansiosamente esse momento. Então, num instante em que todas as barreiras que eu andei durante tanto tempo a construir pareceram cair por terra, ergui a mão e levantei os óculos que me escondiam do mundo para te poder olhar nesses olhos que encerravam tanta ternura nas suas profundezas. No tempo em que durou esse olhar, e que pareceu tanto, embora tivesse sido tão pouco, busquei em ti toda a alegria e paz que tinhas para me dar e libertei-me por instantes da dor que transportava, trocando contigo segredos não pronunciados no silêncio daquele olhar. Mas esse olhar cedo findou e descemos ambos para a rua luminosa, cada um seguindo o seu caminho: tu seguiste os teus amigos, rindo e brincando uns com os outros rua acima, eu segui a direcção oposta, preparando-me mentalmente para abandonar a pouca esperança que me tinhas trazido e enfrentar de novo a realidade que me esperava no fundo da rua. No entanto, ainda antes de te perder de vista, olhei uma última vez para trás, tentando encontrar esse teu sorriso que tanta alegria transportava e que eu não mais esquecerei. Mas tu não olhaste para trás.

quinta-feira, janeiro 12

Hoje, pela primeira vez... (1)

Por ele:
Hoje, vi-te pela primeira vez. Tinha acabado de entrar no autocarro com os meus amigos e reparei imediatamente na tua pessoa, sentada no último banco, tão triste e tão séria, com ares de heroína das tragédias clássicas. As cascatas de caracóis do teu cabelo chamaram a minha atenção, mas o que me prendeu completamente foram os teus olhos, que brilhavam com lágrimas por derramar. Que segredos e mistérios esconderias tu atrás desses olhos tão tristes? Mas esses mesmos olhos que me fitaram durante vagos segundos, fugiram de mim no instante em que puseste os teus óculos escuros, escondendo-te num mundo só teu, no qual eu não podia entrar. Se calhar pensaste que assim me deixavas de fora, resguardando-te no mistério e na bruma dos teus pensamentos, afogando-te na dor que transportavas no olhar e que pensaste esconder do mundo atrás das lentes. Mas não tiveste sucesso. Por entre piadas e gargalhadas, na amena conversa que decorria entre o nosso grupo, fui-te espreitando sem que desses conta, mirando os teus traços graves, a maneira como inclinavas a cabeça para a janela, sem no entanto prestar atenção à paisagem que corria veloz lá fora, a maneira como as tuas delicadas mãos se entrelaçavam no teu colo, pousando sobre a mochila preta. A mochila! Seria isso um indício de que ainda andarias na escola, aproximando-te assim da minha idade e do meu universo? Mas como poderia essa proximidade existir se tu parecias ser de outro mundo, uma deusa caída nesta terra onde não te enquadravas, destacando-te de toda a gente com essa tua aura superior, infeliz, bela e inatingível. Nesse momento, desejei que não fosses tão inalcançável, que eu pudesse fazer algo por ti, algo real, concreto, efectivo, algo que te ajudasse a sair desse mar de tristeza e mágoa e que trouxesse um novo sorriso a esses teus lindos lábios. Parecerias tão mais humana se sorrisses… Não que te faltasse a beleza assim austera, mas se tu me mostrasses nem que fosse um pequeno sorriso, então aí talvez eu pudesse agarrar esse pedacinho de luz e rasgar um arco-íris de esperança e alegria, enquadrando-te neste mundo em que tombaste, deusa caída. Enfim, sonhos e planos irrealizáveis, pois tu nem te dignaste a conceder-me um outro olhar durante toda a viagem, apesar dos meus olhos procurarem constantemente os teus, numa tentativa vã de te dar a minha força e o meu apoio para que pudesses suportar melhor qualquer que fosse o problema pelo qual estivesses a passar.
Stop. Cheguei ao meu destino e, para minha surpresa, também tu chegaste ao teu. O ar apático com que tinhas seguido durante todo o caminho abandonou-te e olhaste em teu redor, cruzando esses teus belos olhos tristes com os meus, que te aguardavam ansiosamente. Os óculos escuros pareciam uma barreira entre nós, mas subitamente a tua mão ergueu-se e afastou essa defesa, permitindo que nos olhássemos verdadeiramente, permitindo que eu me perdesse nesse teu olhar profundo, procurando em ti tudo aquilo que me faltava e tentando dar-te tudo aquilo que me parecia fazer-te tanta falta. E esse olhar que trocámos, e que me parecia ser infindável, cedo terminou, pois a vida não espera por nós e o tempo não nos dá tempo para parar. Saí-mos ambos para a rua luminosa e cada um seguiu o seu caminho: eu fui para cima, seguindo os meus amigos para uma tarde que iria ser muito divertida, tu seguiste para baixo, como que para o fundo dos teus problemas mais íntimos. No entanto, ainda antes de te perder de vista, olhei para baixo uma última vez, procurando aqueles teus olhos que nunca mais esquecerei. Mas tu não olhaste para trás.